por Paulo Bentancur
A leitura é uma ação delicada, difícil – só na aparência simples. Pega-se
um livro que se elegeu, com certa incerteza (como ter certeza acerca do que
vamos encontrar no miolo do volume?), e abre-se, como abrimos uma porta para
entrar numa casa, num auditório, em algum espaço no qual coisas acontecerão. Não sabemos o que vai acontecer. E isso nos deixa curiosos, às vezes ansiosos,
às vezes pressionados pela atenção que é preciso colocar durante o ato da leitura,
essa visita a esse espaço onde muita ação e muitas personagens surgirão diante
de nossos olhos.
A ação pode ser pouca lenta, complicada (mais psicológica que movimento
externo) – e nos aborrecer.
Pode ser vertiginosa, cheia de detalhes, e nos deixar sem fôlego,
emocionados pelos acontecimentos.
Pode ser uma ação delicada, uma única trama sem grandes lances
acrobáticos ou perigosos, mas no entanto repletos de riqueza humana no que os
protagonistas realizam. E isso pode nos tocar fundo. Fixar raiz em nossa
memória.
Quando se fala em ação, pensa-se logo em diversão, distração. Isso faz
parte, sem dúvida, porém (e que ótimo “porém” esse) uma obra literária sonha
geralmente com algo maior: comover o leitor, deixar-lhe sinais de que a vida é
mais rica ainda do que aparenta. E é fundamental estarmos alertas para captar
esses sinais.
As personagens. Pode-se dizer “os” personagens ou “as” personagens. É
substantivo comum de dois gêneros. Alguns estranharão: por que “a” personagem?
Porque uma de suas fontes vem da palavra latina “persona”, que quer dizer
máscara. E ser uma personagem é vestir uma máscara, cumprir à risca um papel. O
autor não perdoa. Mas a personagem também não. Muitas vezes, enquanto estou
escrevendo, a personagem resolve fazer coisas que eu nem imaginaria ela
fazendo. A personagem tem, sim, a sua independência. Controlada por mim, mas
ainda independência. Sob esse aspecto, a personagem nunca é um “túmulo”,
expressão que utilizamos para definir pessoas tímidas, discretas, que não dizem
nada sobre si e sobre os outros ou dizem quase nada. Num livro, as personagens
são expostas cruamente, impiedosamente pelo escritor. E o leitor tem a
afortunada oportunidade de (como um espião) descobrir tudo, os segredos mais
invioláveis, na vida jamais mostrados, na literatura sempre, de um jeito ou de
outro, exibidos. Sem, claro, que a personagem saiba. Você, leitor, fica a par de tudo. E a personagem não irá persegui-lo,
fique tranquilo. Ela ignora o quanto você sabe. Basta ler como se espiasse por uma fresta que o levasse a um mundo paralelo.
Sim, a literatura é um mundo paralelo. E um mundo – uau! – com a ambição
saudável de examinar quase microscopicamente tudo o que neste mundo, o real, de
onde escrevo, não se examina, exceto os cientistas (descobertas que só ficam
entre eles no momento em que ocorrem, e que só são divulgadas tempos depois, já
de uma forma um tanto simplificada). A literatura não, a literatura é um mundo
secreto, mas o mais democrático dos mundos secretos. O mais popular.
Por isso peço-lhe, jovem amigo que ainda está treinando olhar a página
impressa pelo menos uma vez a cada dois dias: aguce os ouvidos. Ouça as
palavras que o autor utiliza, o seu vocabulário. Socorra-se no dicionário se
alguma delas lhe soar estranha. Escute a harmonia das frases, o ritmo dos
parágrafos. A música do texto todo. A linguagem de que se utiliza um autor é
como o modo de falar de uma pessoa. E uma pessoa mostra muito quem é pelo jeito
como se expressa, mesmo que minta.
Ler com todas as antenas ligadas ajuda-nos a flagrar a mentira, a achar a
verdade até em lugares que ela parecia nem existir, de tão singelos que são
(uma estrela cabe num grão de areia, é uma ideia e uma imagem a se pensar). E,
mais que tudo, a beleza. A beleza é a verdadeira verdade, a verdadeira bondade,
a arte expressa com toda sua musculatura à mostra.
E, por fim, leia procurando, não só ao autor, à história que ele conta,
aos personagens que ele pinta, aos cenários que descreve, à linguagem com a
qual ele conversa com você. Leia procurando a si mesmo. Em algum trecho, no
meio do caminho, ou até no fim, quando menos esperar, você poderá se deparar
com algum fragmento do livro que diz tudo aquilo que você sempre desejou dizer
ou precisou dizer e não sabia como. Agora sabe. Agora pode.
Porque leu, e, lendo, pode escrever-dizer a voz que se somou à sua e,
desta forma, ajudou a sua voz a então poder, a partir da leitura, começar a
desenhar o rosto que você de fato tem (até então ilegível para você), a
história que é sua (e que você nem sabia que havia uma história possível de ser
contada). O jovem leitor em geral não descobriu ainda que somente com a leitura
ele conquista não apenas o conhecimento “externo” do que muitos escritores
quiseram dizer e incontáveis histórias e as figuraças que vivem essas histórias,
conquista não apenas uma “cultura”, a permitir-lhe ser, inclusive, um bom
falante e um bom ouvinte. Mais que isso, conquista a si e começa enfim a
infinita aventura de desvendar os mistérios que ele próprio carrega, há anos.
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PAULO BENTANCUR, nascido e residente em Porto Alegre,
PAULO BENTANCUR, nascido e residente em Porto Alegre,
é escritor, crítico, oficineiro, tradutor e assessor editoral.
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