por Paulo Bentancur
Tudo começa, naturalmente, na infância. Mas qual a criança
que não se interessa por um livro, um gibi, a contação de uma história? Depois,
crescemos, e, envolvidos com tantas coisas “séééérias” (sim, são sérias, mas
ler é algo muuuuito sério, questão de saúde mesmo. E saúde mental”), crescemos,
eu dizia, e vamos passando a ler menos, menos, cada vez menos. Deixando de
brincar e de buscar o grande tesouro que está enterrado num só lugar: na nossa
imaginação. Uma perda terrível, irrecuperável. Daí que a única solução é
JÁ-MAIS parar de ler.
É preciso ler, ler muito, para poder pensar, pensar bem, para
poder ler bem, para poder escrever, e escrever bem. Para poder falar, e
falar bem. Para poder escutar, e muito nitidamente, a imensa sinfonia do mundo.
E até mesmo o discurso mudo do nosso amigo amargurado ao lado. Ou de nosso
amigo feliz ao lado. Compreendê-lo de fato: isto também é ler. E só a leitura
anterior nos permite tal coisa.
A seguir, alguns passos para o incentivo à leitura, quando
o leitor ainda está verde e, de certa forma, SEMPRE estamos verdes. Eu próprio
me sinto jovenzinho diante dos grandes desafios, e aprender tudo de fantástico,
e curtir tudo de fantástico que a vida tem a me proporcionar é uma provocação
diária. E é preciso estar pronta para enfrentá-la. E só lendo muito deixo minha
mente com a agilidade
necessária para acompanhar tudo, na mesma velocidade, com as mesmas cores e
músicas com que a realidade me fala e me desenha seu rosto múltiplo.
Eis aqui meus eternos primeiros
passos.
1. A faixa etária adequada para o contato inicial com livros se dá entre os
dois e os cinco anos.
Mas depois essa faixa se estende. E nunca tem fim esse
começo. Pode-se começar aos 15, aos 20, aos 30, ou no último dia de vida (o que
seria triste, mas, ainda assim, uma vitória);
2. É importante que o professor indique o livro correspondente à idade e à capacidade
de concentração da criança ou que os pais avaliem a adequação desse material.
Mas depois, já crescidos, temos plena capacidade para
avaliar a adequação do material de leitura às nossas necessidades e
expectativas.
3. A leitura deve transcorrer em um ambiente calmo, sem interferências ou
ruídos (rádio, televisão etc.). O adulto deve assumir o papel do narrador da
história, familiarizando assim o pequeno “leitor” com o autor que apresenta a
narrativa.
Mas depois, bem mais tarde, aprendemos a achar o ambiente
adequado, formamos nosso ambiente, construímos a região aconselhável na qual
podemos viajar fundo, mergulhar através da leitura. E, cá pra nós, mesmo com um
barulhinho perto, se de fato estamos interessados, nada nos tira a
concentração.
4. É fundamental que o adulto que está apresentando o livro à criança faça
comentários sobre a aparência do volume, sobre as figuras, o formato, talvez
até contando algum fato da vida do autor. Enfim, é decisivo mostrar à criança
interesse em folhear o livro, demonstrando que ali, naquelas páginas, muita
coisa se pode descobrir e se quer descobrir. E na hora de ler, faça-o
dramatizando, com emoção escancarada. Tudo para que jamais o ato da leitura
pareça algo chato ou desinteressante.
A mesma coisas faremos conosco mesmo anos mais tarde. E
sempre, sempre, sempre. Quando temos um CD, um DVD, para ouvir, ou ver,
executamos exatamente esta mesma operação, nos informando acerca de todos os
detalhes que cercam aquela gravação.
5. Se a criança quiser tomar o livro de suas mãos e folheá-lo devagar, de
qualquer jeito, “erradamente”, nenhum problema. Deixe. Não se deve ter pressa,
e esse processo de convivência com o livro, no início, vai ser assim mesmo.
E será eternamente assim. Eu, aos 51, folheio alguns livros
apressadamente. Outros, muuuuito devagar. Outro nem folheio, cruz-credo!
Leitura, como tudo no mundo, contém maravilhas e porcarias, ofertas para todos
os gostos, e a gente deve ter a liberdade de fazê-la segundo nosso ritmo
pessoal.
6. Cada ilustração e cada palavra devem ser mostradas. Uma dúvida, uma
hesitação? Pare, explique, volte atrás. É decisivo não perder o fio da meada.
Compreender direitinho a história para gostar dela.
Sabem que a verdadeira leitura não é ler só uma vez? A
verdadeira leitura é RE-LER. Porque na releitura (como quando vemos uma pessoa
mais de uma vez) é que a gente começa mesmo a enxergar detalhes importantes que
num primeiro olhar passam desapercebidos, que num primeiro olhar nem é possível
perceber.
7. A criatividade da criança deve ser encorajada. Antes de cada cena seria
interessante perguntar o que ela acha que vai acontecer.
Ora, naturalmente é o que fazemos a vida inteira,
desconfiando de uma cena num filme, imaginando as possibilidades do
desenvolvimento em certa altura em um texto. Somos (que bom!) incuravelmente
curiosos e imaginativos, e estamos sempre nos antecipando ao que pode
acontecer. É muito bom observar com atenção e paciência, para deixar rolar. Mas
é ótimo também exercitar nosso dom de perceber qual o próximo lance do jogo.
8. O ato da leitura – nessa fase inicial – deve ser em conjunto. É uma ótima
oportunidade para pais e filhos se sentirem juntos, unidos. Manifestando
carinho, calor, o adulto envolve afetivamente a criança e a faz lembrar desse
momento – a leitura – como um instante prazeroso.
Aí crescemos, e, claro, lemos sozinhos. Certos livros são
fundamentais que sejam lidos na solidão. Mas outros livros e revistas, bem, é
bastante legal compartilhar com a galera uma leitura em grupo, como quando
alguém conta uma história em voz alta e o restante da turma se liga,
estabelecendo assim vínculos e laços de amizade e de entendimento cada vez mais
fortes.
9. Se a criança reagir negativamente ou não quiser terminar o livro, é
importante deixar que isso aconteça. O livro não pode ser uma obrigação, uma
sentença, um castigo.
Eu, por exemplo, já desisti de tanto livro nesta minha
vida. Livro é como gente. Tem gente bacanérrima e gente muito mala. Tem livro
mala. E livro pra lá de sensacional. A gente só precisa ter humildade para não
decretar só por impaciência que o livro é mala e ponto, estamos conversados.
Não. É fundamental agüentar um pouquinho para ter certeza de que não é
má-vontade da gente. Se for mesmo má-vontade do livr
10. Terminado o livro, deve-se conversar com a criança sobre a história lida.
Pede-se que a criança conte o que acabou de ser lido. Pode-se ir escrevendo a
história, agora contada pela criança, observando o nexo entre as partes, a
correta ligação entre as diversas cenas do enredo. Com isso, a criança vai
aprendendo que o pensamento tem uma estrutura com começo, meio e fim.
11. Não é raro a criança solicitar que se leia mais de uma vez a mesma
história. Satisfaça-a, sem maiores preocupações quanto ao retorno, repetidas
vezes, ao mesmo livro. Isso serve para fixar uma identificação com determinada
trama, determinado estilo, determinado assunto. Não esquecer, entretanto, de
oferecer livros bem diferentes, comparando-os, indicando assim a diversidade de
opções de leitura
CONSELHOS
PARA UM JOVEM LEITOR
A
leitura é uma ação delicada, difícil – só na aparência simples. Pega-se um
livro que se elegeu, com certa incerteza (como ter certeza acerca do que vamos
encontrar no miolo do volume?), e abre-se, como abrimos uma porta para entrar
numa casa, num auditório, em algum espaço no qual coisas acontecerão. Não
sabemos o que vai acontecer. E isso nos deixa curiosos, às vezes ansiosos, às
vezes pressionados pela atenção que é preciso colocar durante o ato da leitura,
essa visita a esse espaço onde muita ação e muitas personagens surgirão diante
de nossos olhos.
A ação pode ser pouca lenta, complicada (mais psicológica que movimento
externo) – e nos aborrecer.
Pode ser vertiginosa, cheia de detalhes, e nos deixar sem fôlego, emocionados
pelos acontecimentos.
Pode ser uma ação delicada, uma única trama sem grandes lances acrobáticos ou
perigosos, mas no entanto repletos de riqueza humana no que os protagonistas
realizam. E isso pode nos tocar fundo. Fixar raiz em nossa memória.
Quando se fala em ação, pensa-se logo em diversão, distração. Isso faz parte,
sem dúvida, porém (e que ótimo “porém” esse) uma obra literária sonha
geralmente com algo maior: comover o leitor, deixar-lhe sinais de que a vida é
mais rica ainda do que aparenta. E é fundamental estarmos alertas para captar
esses sinais.
As personagens. Pode-se dizer “os” personagens ou “as” personagens. É
substantivo comum de dois gêneros. Alguns estranharão: por que “a” personagem?
Porque uma de suas fontes vem da palavra latina “persona”, que quer dizer máscara.
E ser uma personagem é vestir uma máscara, cumprir à risca um papel. O autor
não perdoa. Mas a personagem também não. Muitas vezes, enquanto estou
escrevendo, a personagem resolve fazer coisas que eu nem imaginaria ela
fazendo. A personagem tem, sim, a sua independência. Controlada por mim, mas
ainda independência. Sob esse aspecto, a personagem nunca é um “túmulo”,
expressão que utilizamos para definir pessoas tímidas, discretas, que não dizem
nada sobre si e sobre os outros ou dizem quase nada. Num livro, as personagens
são expostas cruamente, impiedosamente pelo escritor. E o leitor tem a
afortunada oportunidade de (como um espião) descobrir tudo, os segredos mais
invioláveis, na vida jamais mostrados, na literatura sempre, de um jeito ou de
outro, exibidos. Sem, claro, que a personagem saiba.
Você, leitor, fica a par de tudo. E a personagem não irá persegui-lo, fique
tranqüilo. Ela ignora o quanto você sabe.
Basta ler como se espiasse por uma fresta que o levasse a um mundo paralelo.
Sim, a literatura é um mundo paralelo. E um mundo – uau! – com a ambição
saudável de examinar quase microscopicamente tudo o que neste mundo, o real, de
onde escrevo, não se examina, exceto os cientistas (descobertas que só ficam
entre eles no momento em que ocorrem, e que só são divulgadas tempos depois, já
de uma forma um tanto simplificada). A literatura não, a literatura é um mundo
secreto mas o mais democrático dos mundos secretos. O mais popular.
Por isso peço-lhe, jovem amigo que ainda está treinando olhar a página impressa
pelo menos uma vez a cada dois dias: aguce os ouvidos. Ouça as palavras que o
autor utiliza, o seu vocabulário. Socorra-se no dicionário se alguma delas lhe
soar estranha. Escute a harmonia das frases, o ritmo dos parágrafos. A música
do texto todo. A linguagem de que se utiliza um autor é como o modo de falar de
uma pessoa. E uma pessoa mostra muito quem é pelo jeito como se expressa, mesmo
que minta.
Ler com todas as antenas ligadas ajuda-nos a flagrar a mentira, a achar a
verdade até em lugares que ela parecia nem existir, de tão singelos que são
(uma estrela cabe num grão de areia, é uma idéia e uma imagem a se pensar). E,
mais que tudo, a beleza. A beleza é a verdadeira verdade, a verdadeira bondade,
a arte expressa com toda sua musculatura à mostra.
E, por fim, leia procurando, não só ao autor, à história que ele conta, aos
personagens que ele pinta, aos cenários que descreve, à linguagem com a qual
ele conversa com você. Leia procurando a si mesmo. Em algum trecho, no meio do
caminho, ou até no fim, quando menos esperar, você poderá se deparar com algum
fragmento do livro que diz tudo aquilo que você sempre desejou dizer ou
precisou dizer e não sabia como. Agora sabe. Agora pode.
Porque leu, e, lendo, pode escrever-dizer a voz que se somou à sua e, desta
forma, ajudou a sua voz a então poder, a partir da leitura, começar a desenhar
o rosto que você de fato tem (até então ilegível para você), a história que é
sua (e que você nem sabia que havia uma história possível de ser contada). O jovem
leitor em geral não descobriu ainda que somente com a leitura ele conquista não
apenas o conhecimento “externo” do que muitos escritores quiseram dizer e
incontáveis histórias e as figuraças que vivem essas histórias, conquista não
apenas uma “cultura”, a permitir-lhe ser, inclusive, um bom falante e um bom
ouvinte. Mais que isso, conquista a si e começa enfim a infinita aventura de
desvendar os mistérios que ele próprio carrega, há anos.
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Paulo Bentancur é Escritor, poeta, crítico, oficineiro on line em 6 gêneros.
Autor de A solidão do Diabo (contos), Bodas de osso (poemas) e Três pais (infanto-juvenil).
Foi premiado com o Açorianos em três categorias diferentes 5 vezes.