Paulo Bentancur
Leio, leio bastante, leio demais. Sempre li, leio todos os dias, lerei
sempre. Como deixar de ler? Atravessei mais de quatro décadas, já alfabetizado,
a experimentar pequenos milagres dentro do cotidiano que inclui a leitura. A
leitura constante me ensinou a falar muito além da fala natural, aquela que
todos somos capazes. A leitura constante me levou a chegar até o mais próximo
possível do desenho complexo de quem sou de fato. Lendo tanto, e escrevo e falo
a partir disso, como se a cada momento refizesse o mesmo caminho,
aperfeiçoando-o a cada retomada. Desfazendo e refazendo esse percurso e, nele,
me refazendo.
De alguma forma, pela palavra, me reinauguro. Não há nenhum exagero
nisso. Exagero, penso, é não ler. Como podem existir pessoas que não lêem?!, me
espanto. É espantoso pensar que alguém possa viver aquém do mundo verbal na sua
expressão máxima (a desse mundo, na escrita impressa). Em tal situação, sem o
remédio, sem a ferramenta, sem a arma que a palavra impressa representa, sofrem
de um sério problema de saúde. Saúde mental. Ler deveria ser prescrito pelos
médicos. Os psiquiatras, no caso.
Os que não lêem praticam uma arte dificílima, que ignoro qual seja. Uma
arte que ignora a arte, uma arte de existir apenas, sem a vida que há na
apreensão das mil variantes da existência, apreensão só possível através da leitura
de textos que recriam todas as experiências humanas possíveis e impossíveis. A
vida, mais que na própria vida, está nos livros. Uma vida especial, aprofundada
de um modo que a vida mesma, sem o suporte verbal, não suporta.
Que difícil – que terrível! – deverá ser não ler. Nem imagino como se
pode conseguir sobreviver a essa catástrofe.
Através da palavra, recomeço a cada fala, a cada pensamento. Quem fala
(e falar também é ler, porque é espelho de nossa leitura) se apresenta a quem
escuta e nesse encontro nasce o novo, uma relação até então inédita. O
escritor: eu. A cidade: o cenário, o personagem e o tema. Uma obra se inicia?
Não. Ela já existe há muito tempo. É um capítulo que se abre e nele nos
encontramos.
Já visitei mais de cem cidades no Rio Grande do Sul, e em todas elas
estive a convite de escolas, universidades, feiras de livro organizadas por
instituições. Fui “a trabalho”, isto é, dar palestras, ter encontros com
alunos, professores. Sempre buscando, não promover meus livros, não, mas
promover um dos bens mais preciosos que conheço: a palavra impressa, cuja
convivência nos ajuda a nos entendermos melhor, a entendermos melhor nosso próximo,
a acharmos um jeito eficiente e verdadeiro de mostrarmos quem somos para os
outros e para nós mesmos.
Sem as palavras, seríamos seres ilegíveis.
A palavra nos desenha. Nos recorta. Nos seleciona. Nos traduz. Deixamos
de ser um estranho, de ser um animal belo porém de poucos recursos. O uso das
palavras – o bom uso delas, naturalmente – nos aproxima uns dos outros e nos
aproxima dos mistérios da vida mais concreta (que é indiferente a nós sem tal
ponte) e das profundezas mais insondáveis do espírito.
Aliás, através das palavras tais profundezas deixam de ser insondáveis.
Sempre achei que nasci duas vezes. Quando minha mãe me deu à luz e
quando aprendi a ler.
Depois que comecei a ler, não parei. Não parei mesmo. E resolvi que
queria escrever para, de alguma forma, retribuir o prazer que os livros me
davam.
Decidi cedo que seria escritor. Acho que com doze anos eu já sabia que
o meu destino seria o de publicar livros. Embora faltasse muito tempo ainda,
claro.
Mas comecei, pré-adolescente, a escrever contos, poemas, quase todos os
dias.
Eu era um menino como qualquer outro. Levantava pandorgas em Santana do
Livramento, onde nasci (depois que fui para Porto Alegre não levantei mais),
jogava futebol e era metido a craque (metido apenas, os adversários discordavam
dessa minha opinião e geralmente estavam certos), me apaixonava mensalmente por
uma colega de aula. Como todos. Ou quase todos, já que alguns de jeito nenhum
que iriam... querer ser escritor! Apaixonar-se mensalmente dá menos trabalho.
Minha família mudou-se para Porto Alegre em 1967. Comecei a publicar
contos, artigos e poemas nos jornais da capital aos 18 anos. Em seguida fui
trabalhar em editoras.
Minha tarefa consistia em ler livros escritos e convencer o
dono da editora em publicá-los ou em recusá-los. 90% eram recusados, o que é
normal. Nesse trabalho, acho que conquistei 10% de amigos e 90% de inimigos.
Demorei para decidir-me a publicar meus próprios livros. Primeiro,
preferi testar meus escritos em concursos literários. Quando ganhava algum,
mandava o texto premiado para alguma editora. Se a editora aprovava o texto,
que bom. Eu topava e o livro saía. Foi assim que passei a publicar. Bastante
até. Minha bibliografia consta de mais de 30 títulos, a maioria de
infanto-juvenis. Por quê?, me perguntam. Acho que porque tenho um temperamento adolescente,
ou seja, sou inquieto, curioso, em constante transformação, o que me parece um
sinal de vitalidade.
Ser leitor não significa ser escritor, é claro. Mas como sou escritor e
como a coisa que um escritor mais faz na vida não é escrever, mas é ler, sou um
leitor antes de mais nada. Um leitor voraz, insaciável.
Vivo, dentro do universo, como todos, um universo em especial, o do
livro, do escritor e da leitura. Universo que passa pela escola, que pode formar
leitores mas também pode destruí-los. Passa pelas feiras de livro, que, como
qualquer evento, qualquer festa, servem de convite – nem sempre irrecusável,
infelizmente – para o convívio com o livro. Passa, em resumo, por diversos
aspectos, uns e outros contribuindo ou atrapalhando uma relação que deveria ser
natural, como nossa vontade de ir ao cinema, de escutar música: a relação do
ser humano com o ato de ler.
Ler – faço questão de destacar – QUALQUER COISA. Existem gibis
fantásticos, histórias em quadrinhos maravilhosas. Algumas graphic
novels superam muita literatura metida a besta que anda por aí. Questão de
ler, ler bem e então poder distinguir. Há revistas com matérias insuperáveis, reportagens
com todos os ingredientes de uma boa ficção (e com o tempero de a personagem
principal ser a realidade), artigos, crônicas e entrevistas de excelente
qualidade. Tem jornal cuja leitura constante nos deixa pessoas mais completas.
Ler. Isso é o que importa. Leitura que não se resume apenas à palavra,
mas que não a dispensa. Leitura que igualmente se dá no ato de olhar uma
gravura, uma foto, um quadrinho, um olhar de ressaca ou um olhar limpo, um
expressão de contrariedade ou um sorriso no que ele tem de menos evidente.
Falo mais em livros porque é neles que em geral há material impresso
mais denso, é neles que moram os clássicos, os autores importantes. Mas eu, por
exemplo, além dos 2.000 livros que possuo em casa, assino dois jornais e três
revistas. E ainda fico com vontade de assinar outros mais.
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* Escritor, poeta, crítico,
oficineiro on line em 6 gêneros.
Autor de A solidão do Diabo (contos), Bodas
de osso (poemas)
e Três pais (infanto-juvenil). Foi premiado com o Açorianos em três
categorias diferentes 5 vezes.
Parabéns, Paulo, pelo excelente artigo, muito bem construído e com informações básicas sobre o seu próprio aprendizado através dos livros, enfatizando a importância da leitura na formação social das pessoas. Muito bom!, bjs
ResponderExcluirMais uma vez agradeço a leitora fiel que te revelas, poeta Helena da Rosa. Não só leitora fiel, mas, por ser fiel, ser sagaz, atenta, das raras pessoas capazes de obter uma ótima recepção do texto que escrevemos. Ser lido por ti é um legítimo prêmio. Fico muito contente por teu comentário. Parabéns e um beijo.
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