por Caetano Lagrasta
Era uma vez uma fábrica de
cubos. Ensinava-se a construção de quadrados, com a chatice peculiar da forma
reta, do ângulo reto que inverte o quadrado das distâncias, bem... vai daí que,
na frente desta fábrica existia outra, dedicada à feitura de esferas, cujos
diâmetros eram tão variados e a alegria
de uma esfera a girar era tão contagiante que as diferenças de criação e
postura, diante da natureza e da vida, tornavam as duas fábricas inimigas. Como
se não bastasse, os quadrados eram convencidos de possuir uma superioridade
formal e conceptual, por estarem colados ao solo. Onde eram postos, ficavam; às
vezes, permaneciam invertidos, de cabeça para baixo, mas não reclamavam,
ocupavam com galhardia e ostentação o espaço do terreno, com a sua irritante e
insípida quadradez; sentiam-se, isto é verdade, donos do solo, projetavam
sombras e enalteciam-se mutuamente a felicidade e honra de assim terem nascido
- quadrados!
As esferas eram belas e
vivazes, deslocavam-se com a leveza e a graça de uma gaivota, espelhando-se no
mar. Não projetavam sombras duradouras, o que as norteava era o espírito de
renovação: não agasalhavam qualquer forma, eram lascivas, sensuais, na sua
redondez de seios adolescentes.
De um lado, a austeridade
fingida, o orgulho, a paranoia da mistificação; do outro lado da rua, a brejeirice e o descortino das largas vistas; sentia-se o bafejar de mudança, de
movimento e vida.
A instabilidade comunal
refletia-se no comportamento violento das ruas. Naquela, mais do que em outras,
transparecia um constante antagonismo, uma guerra sempre latente, um desejo
inconsciente de agressão e mágoa. No fundo, os quadrados sabiam, intimamente,
que a sua forma era frágil e estava fadada ao desaparecimento. Negaceavam a si
mesmos os conhecimentos de um determinismo trágico que os levaria ao
esquecimento. As esferas, por sua vez, pulavam, naquela alegria passarinheira
dos que aceitam as mutações e se entusiasmam, excessivamente, com vislumbrar o
poder que se lhes estende aos pés, como armadilha.
No início, as batalhas - se é
que assim podemos chamar os atritos geométricos - não passavam de encontrões,
que produziam o ruído enervante de bonecos de boliche sendo derrubados; aos
poucos, a situação foi se agravando, com nítida vantagem para as esferas, que
causavam lesões profundas aos quadrados, não tanto formais (no sentido de
físicas) como comportamentais (no sentido de espirituais). As esferas dominavam
a rua. Os quadrados recolhiam-se ao ódio, espreitando a alegria, através das
vidraças empoeiradas da fábrica. A vida e a expansão estavam cada vez mais
próximas - os quadrados, acuados, sentiam o fim das trevas e do domínio. O
poder da forma, que fora conservado durante séculos, esvaziava-se de conteúdo.
A alegria estava no poder.
Eis que, por desgraça das
esferas, descobre-se o princípio de captação da reta e seria muito difícil
explicar os fundamentos científicos de tal descoberta. Apenas podemos dizer que
as esferas foram esmagadas pelo despreparo formal da leveza conceptual e
consequente. A destruição não foi
unicamente física - empastelamento da fábrica circular - houve também a
desintegração de corpos geométricos, num desencadear de imbecilidades.
Esfacelou-se o equilíbrio, a rua recaiu rapidamente na escuridão, na sobriedade
e vetustez da hipocrisia dos poderosos. Os quadrados tomaram posse do solo, com
suas nádegas chatas e viciosas, projetando sombras que provocaram o desaparecimento
de qualquer forma de vida, que não a quadrada, animada exclusivamente pela
mediocridade.
A fábrica circular foi
transferida, pelo poder comunal, para um desvão burocrático, para um beco sem
saída, na periferia, no ostracismo, porque a alegria é o que se esquece mais
depressa e as feridas mal cicatrizadas foram reabertas pela humilhação.
Ouvem-se gritos anêmicos e
passageiros. Floresce a quadratura, conseguem provar novamente que a Terra é o
centro do Universo. A Terra é redonda! - tentam gritar alguns. Não! é quadrada!
- é um centro quadrilátero, voltado para o infinito da própria sabedoria dos
quadrados. A terra é um espelho que, dos quatro lados (aparentes), expulsa
brilho e movimento: somos fixos e sem luz!
Não sei, esta estória me faz
lembrar uma ideia antiga de meu avô, ele dizia: no fundo, todos nós somos
marginais. É isso. Por que as esferas não reagiram, deixando-se levar pela
ilusão, primeiro do poder depois do perdão? Por que a alegria, diante do
efêmero?
Esta é a base da prova pelo
absurdo dos teoremas, quaisquer que sejam. Não sei... é melhor repetirmos todos
juntos: “A Terra é fixa.” “A Terra é o centro do Universo.”.
E deu a aula por encerrada.
* Conto extraído do livro "1968 e Outras Estórias", ed. Le Calmon, Brasília, 2013
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Caetano Lagrasta é Consultor Jurídico e Jornalista.
Autor de livros de contos, poemas e poemas infantís.
Articulista do Projeto Tempestade Urbana
e colaborador do Boca a Penas
Caro Caetano,
ResponderExcluireste foi um dos contos mais inteligentes e divertidos que já li em minha vida. Fiquei fascinada com a leitura!! Que criatividade e que humor fino!!
Quadrado X Redondo: o mundo da retidão inflexível, da presunção X a fascinação do novo, do ousado, das curvas oferecidas pela vida afora.
Um paralelo genial com a falta de ´curvatura´ que a humanidade, com sua arrogância cega, termina por sabotar ela própria.
E o pior é constatar que isso sempre fez parte da nossa história!
Enfim, delirei com a ironia e com a linguagem cativante do seu conto. Galileu, se pudesse, bateria palmas de pé! E eu o faço agora, como sua fã!
Parabéns e obrigada por proporcionar uma leitura que me fez viajar, rir e admirar ainda mais o seu trabalho de escritor.
Um abraço,
Chris.
Chris, obrigado pelos comentários, somos fãs recíprocos e só muito de vez em quando me atrevo a comentários, mas este não gostaria de deixar passar. Você sempre tem demonstrado amizade irrestrita à Adriana a mim, só isto bastaria para nos fazer feliz, mas a crítica literária amiga é apanágio da verdadeira Amizade. Gostei muito do que você observou, espero sempre contar com toda essa condescendência. Obrigado, mesmo.
ExcluirÉ, a inflexibilidade de aderir ao novo, às mudanças sempre causará atritos, medos, enfim. Parabéns pelo reflexivo conto, Caetano Lagrasta. bom dia
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