por André Caramuru Aubert
Desde o início dos tempos (ou, pelo menos, vá lá,
desde o Gilgamesh), a poesia vez por outra passa por momentos de especial
efusão criativa e popularidade. Apenas para ficar em épocas recentes,
poderíamos nos lembrar das décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos, quando
nasceram e explodiram movimentos como os Beats, o Black Mountain, o Harlem
Renaissance e a New York School. Ou então poderíamos pensar no início do século
XX na Europa e nas Américas, que viu florescerem os modernismos de variadas
cepas em diversos países – Brasil incluído.
Mas pense bem: se fosse para escolher um país e
uma época em que a poesia foi mais valorizada, com os poetas retribuindo com
poemas que figuram entre os mais belos jamais escritos, em quem você votaria?
Apesar desse hipotético pleito ter quase que infinitos candidatos, e ser
evidentemente bastante subjetivo, o meu voto iria, fácil, para a China da dinastia
Tang (618-907 dC). Respeitados pelos imperadores e reverenciados pela
população, os poetas deixaram como legado com uma produção inigualável. Contam-se
às dezenas os grandes poetas do período Tang, mas as listas geralmente começam
por aquele que os chineses consideram seu poeta maior, Du Fu. Entretanto, há
muitos mais, e para lembrar apenas quatro, citemos Wang Wei, Li Po, Meng Hao-Jan
e Han Shan.
É uma pena que nós, brasileiros, tenhamos muito
pouco contato com os poetas dessa turma. Traduções aparecem, aqui e ali, nos
blogues e em revistas, e têm sido tentadas desde Machado de Assis (quase todas,
nem seria preciso dizer, retraduções). Se compararmos com o que acontece nos
Estados Unidos, a diferença é abismal. Um bom número de poetas americanos foi
atrás dos chineses clássicos (Ezra Pound, William Carlos Williams, Kenneth Roth,
Gary Snyder, Witter Bynner...), e uma legião de tradutores profissionais têm
oferecido as suas versões em língua inglesa. Nomes como David Hinton, Herbert
Giles, Red Pine e David Young propõem ótimas traduções, muitas vezes dos mesmos
poemas, enriquecendo as possibilidades de leitura. Dessa forma, enquanto passou
e continua passando como que ao largo da costa brasileira, a poesia Tang influenciou
diretamente as obras de grandes americanos, como os citados e, indiretamente,
muitos mais.
A influência Tang sobre a poesia norte-americana acabou
por fazer, na minha opinião, uma grande diferença. Talvez não seja por acaso a
sensação de modernidade que os poemas de Du Fu e companhia passam (e não vamos
nos esquecer de que ele já era um poeta consagrado quando Carlos Magno, o
futuro imperador do Sacro Império Romano-Germânico, ainda usava fraldas). Mas,
se fosse para resumir em poucas palavras o que mais me chama a atenção, nos
poetas da dinastia Tang, eu diria que é o fato de eles serem mestres na arte da
concisão verbal ligada à exuberância lírica. Conseguindo pintar cenários
multicoloridos usando apenas tons pastéis, eles sabiam, como ninguém, escrever muita
poesia em poucas e contidas palavras.
A seguir, uma amostra grátis da poesia Tang, a
partir de traduções para o inglês de David Young, David Hinton, Red Pine e
Kenneth Rexroth:
Meng Hao-Jan (689-740)
Começa o outono
O outono começa discretamente. As noites aos
poucos se alongam,
e pouco a pouco, ventos límpidos se tornam mais e
mais frios,
as chamas do verão abrindo caminho. Minha cabana
de palha vai ficando solitária.
Na escada de baixo, no mato rasteiro, o orvalho
brilha com a luz.
Wang Wei (701-761)
Enlutado por Men Hao-Jan
Em lugar algum vejo meu bom amigo,
este rio Han segue correndo para o leste.
E agora, se procuro pelos velhos mestres,
eu encontro rios e montanhas vazios.
Li Po (701-762)
Inscrito numa parede no Templo do Alto da Montanha
Passando a noite no Templo do Alto da Montanha,
onde você pode alcançar e tocar as estrelas,
eu me atrevo a emitir não mais do que um
sussurro,
com medo de acordar os que moram no céu.
Du Fu (712-770)
Difícil noite
Os bambus estalam no frio
o som invade meu sono
a lua acima das planícies
ilumina uma parte do meu jardim
incontáveis pequenas gotas
formam uma pesada névoa
estrelas dispersas
vem e vão sem avisar
vagalumes piscam para a frente
e para trás na escuridão
pássaros grasnando perto do riacho
delicadamente chamam uns aos outros
enquanto prosseguem
a violência e a guerra
eu me sento, vazio por dentro
e a clara noite vai passando
Han Shan (datas de nascimento e morte desconhecidas)
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O frio nessas montanhas é feroz,
e tem estado assim todos os anos desde o
princípio.
Picos lotados trancados sob neves perenes,
reclusas e escuras florestas expirando névoas,
grama que nunca brota antes do solstício
e folhas que começam a cair no começo de agosto.
Esta confusão inclui agora um hóspede perdido,
Buscando, buscando — não há céu que se possa ver.
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André Caramuru é historiador, editor e escritor.
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