por Patrícia Rita
“Quando surgir a necessidade, leve seus olhos para a natureza e
deixe que os mesmos experimentem. Permita que os seus olhos vejam as árvores
crescerem, como os botões de rosas se formam, como uma borboleta nasce...
Assim, você também, se tornará tão rico quanto à natureza, pois a contemplação
é uma revelação. Essa revelação é um olhar sob o ateliê de Deus; onde repousa o
mistério da criação e o mistério da vida”
Paul Klee
Um assunto que
me faz prosear em disparada é o processo de criação vivenciados pelos artistas.
Mesmo que haja debates e prosas a despeito do mesmo, em estado puro
contemplamos a obra em sua inteireza. Do processo, o artista é que retém os
caminhos sinuosos e curvos propiciado pelos trajetos percorridos em detrimento
ao ato de sua criação; bem como, os sabores e o 'como' alcançaram a superação
de suas próprias limitações, vivendo experiências inimagináveis, reinventando
até a si mesmo. A revelação que estes caminhos o presenteiam são guardados em
sua 'caixinha mágica', no interior de sua alma. Há de se achar que o artista
possui esse egoísmo inerente de seu oficio. Que coisa mais engraçada!
Esses caminhos
silenciosos, mesmo que cada área artística possua a sua maneira de caminhar,
com movimento durante a criação ou a quase imobilidade do artista operante,
auxilia a elevar todo o ser de qualquer artista. O comum a todos eles é o
'alçar de voos' rumo a morada etérea, a morada da criação, a qual se visita e é
seduzido a revisitá-la durante toda a sua vida criativa.
Ele é provocado,
envolvido a tal ponto que se transborda para além do espaço/tempo, tanto com a
chegada de uma inspiração, quanto com o não haver da mesma. Porém, de tanto o
artista revisitar tal morada, ele conquista o direito de gerar sua própria
inspiração a partir do nada. Carrega consigo seus próprios elementos em matéria
bruta que compõem seus instrumentos de trabalho, seja utilizado para manejo,
criação de personagens ou poemas, percorrendo o mistério repleto de bagagem
adquirida ao longo de suas vidas, até
alcançar a aprendizagem oferecida pela obra criada. Uma revelação
que vai se revelando.
Nem sempre os
caminhos do processo criativo são claros: há neblina que o artista se depara
pelo caminho. E quão grandiosa ela é! Como dito por Kalil Gibran 'escuro e
nebuloso é o inicio de todas as coisas, mas não é o seu fim', ouso reforçar
o dito, visto que após a neblina e mesmo quando finalizado uma obra, ela não se
conclui; pois quando alcança o olhar de alguém ou muitos olhares, a obra se
reinventa, realiza sua própria destilação, é levada a outro lugar através das
experiências e olhares de outras pessoas. Não sei se por teimosia, mas é fato,
a obra volta até o seu criador tão repleta de vida que ela chega a reinventar o
próprio artista. Vê, ilumina tudo!
No todo, seja
prazeroso ou um tanto chato, claro ou escuro, de forma breve ou longa, o ato de
transformar uma coisa em outra no processo da criação se aproxima ao da
alquimia, de maneira respeitosa e delicada. Não é propriamente a alquimia em
seu estado puro que interessa aqui, ela é uma outra forma de arte, ciência e de
conhecimento, que possui outra forma de estar no mundo. E é essa 'outra
forma de estar' que a possível alquimia pode estar envolta no processo da
criação.
Para os
artistas, assim como para os alquimistas, cada etapa de um processo criativo e
de estudo possui uma aprendizagem que
auxilia na evolução no seu ser, de maneira que desencadeia a beleza e harmonia
ao mundo.
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Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim – O Paracelso, alquimista (1493-1541) |
Para eles, a
natureza e o ser formam um único corpo que perpetua a todo momento. A obra criada
contém um universo impresso da natureza, seja humana, animal ou vegetal,
arraigada de dramas, gozações, guerreiros e guerrilhas; elas passam processos
inenarráveis até ganharem forma, adquirindo a própria maneira expressiva de ser
.
Assim os artistas tornam-se múltiplos
elementos em composição. É um jeitinho delicado de um possível ‘tocar’
no sagrado de si, no sagrado da matéria e do universo. Quão singelo e taciturno
subsiste nesse tocar!
Quando vemos uma
criança brincar com um pedaço de madeira, podemos quase tocar o sagrado do
mundo mágico que ela está prestes a criar, refletido para quem observa no ato
do brincar e na forma com que se brinca. Essa percepção se dá quando passamos a
não ver mais o pedaço de madeira em absoluto, mas sim como a criança ao brincar
realiza voos para além do pensamento e da fantasia, transformando a matéria da
madeira em um avião de quatro ou mais turbinas.
A linha
invisível entre a arte e o oficio do artista pode ser visto como essa criança e
seu brinquedo destilado e mágico, que faz de seu próprio ‘arcabouço de
experiências’ um espaço poético de
seu ser sociológico e fisiológico. Assim, propicia viagem simbólica pelo
espiritual e sagrado do oficio que coexiste no processo de uma criação
alcançando a 'morada' da criação, a tal ponto que ‘o que está embaixo
é como o que está em cima’.
É alcançando
essa morada (digo alcançar pois é preciso conquistá-la), que o artista se
utiliza de seu cadinhos simbólicos e começa a mistura de elementos para tecer sua obra. Essa mistura trata de
matéria e composições até lunares, já que a obra sempre possui o brilho das
estrelas. Os elementos em questão são extraídos da própria 'veia da vida' do
artista, através do refinamento apurado de seu olhar, seus questionamentos e
possibilidade de transformação; bem como, de sua época, com tudo que preenche
seu tempo, social, cultural e econômico. O intangível, como na destilação do
elemento mercúrio, tão usado pelos alquimistas, talvez seja a destilação de sua
técnica adquirida através de estudos, referências e identificação. Com a chama
do fogo, ou até mesmo das práticas, o artista dilui e assimila os mesmos
concebendo a sua identidade artística e sua assinatura. O instrumento fogo,
usado abaixo do tubo a ser aquecido determinado elemento pelos alquimistas, é a
chama da vela, que reside no coração do artista. É a chama do desejo que nunca
se apaga, inflama por dentro e sai aquecido para fora em forma de obra. Quão
bela é a chama de uma vela!
Para o filósofo Herder 'o que se chama vida na criação é, em
todas as formas e em todos os seres, um mesmo e único espírito, uma chama
única', que se faz na multiplicidade
e nos detalhes que a chama produz no imaginário. Para Bachelard, 'ela ainda
está enraizada em nossos passados longínquo pela chama de uma admiração
natural, que determina a acentuação do prazer de ver e nos força a olhar'.
O artista e o
alquimista são de fato andarilhos que percorrem estradas da vida. São cúmplices
da vida, e a vida, cúmplices deles. A ordem não importa.
É como se o
corpo físico ficasse suspenso, sob o que sabemos e o que não sabemos. O voo do
além corpo do artista é longínquo e breve para os ponteiros do relógio
presente. Porém, em criação, o tempo não passa e não pára, coexiste em um lugar
que os pertencem. Extraído de lá, materializado em sua criação, traços ou
linhas tênues de seu próprio conhecimento, ou de conhecimentos deixado por gerações ou até no
alcance do conhecimento futuro. Esse conhecimento do futuro pode até não ser reconhecido
em sua época ou em vida. De fato, com o chegar da hora ou período, é que se
obtém reconhecimento. Porém, se
serão famosos ou não, isso não importa para o presente escrito. Cada artista
desenvolve a arte à sua própria maneira. Algo comum a todos eles é o fato de
não saberem o significado da palavra desistir, por isso continuam a espalhar
beleza para os nosso olhos e alimentos para nossa mente e alma. O que todos
possuem fortemente em comum é o tempo atemporal e a labareda da chama
da vela que os fazem ressurgir como fênix em cada criação.
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Foto: Dervish |
A criação faz com que todos os artistas habitem a mesma morada; é um ateliê universal que recebe as gerações passadas, presentes e as do futuro, estejam elas onde estiverem no espaço ou espaço/tempo, seja numa arte escrita como em um conto de amor expresso, em um livrinho de compota de pimenta, nas meninas 'aladas' ou menina azul, no movimento de um ator, ou na borboleta que faz voar os 75 poetas. Todos artistas em suas distâncias alcançam em seu voos através do destino (invisível, mas possível), o ateliê da casa dos artistas. Cada artista eterniza sua própria idade na obra criada. Não rejuvenescem, mas o tempo se materializa impresso em obras.
O sagrado e a
alquimia, a arte e o oficio, o criador e o ato da criação possuem um elo entre
o tempo e o espaço, o ritualístico e a sociedade contemporânea, ou entre a
expressão da arte e a arte de se viver a vida, atravessando os limites da
consciência. O possível é um fio invisível que une a arte à vida
correlacionando-a com o conhecimento, em uma longa viagem através dos caminhos
de um andarilho, em que o processo da criação forma-se e dá forma. E assim,
toca-se o segredo da metafísica na morada da criação.
Patrícia Rita é escritora e atriz, ministra aulas de teatro, dança e antropologia na art-performance para criança e adultos, com base na antropologia teatral.
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