Confissões ao pé da lenha quente
Pois, acreditem, é o
primeiro livro de gastronomia que me emocionou, para lá da cozinha e dos
sabores de minha infância.
Entramos, minha esposa e
eu, no Arturito (que seria T’ula – fogo de lenha, em quíchua), por algum
palpite ou leitura, nos primórdios desta década, e sentimos que daquele
sobradinho, transformado num jardim aconchegante – cuja luz demora-se a
descobrir de onde estaria vindo –, chega-se ao salão, numa parada obrigatória,
todas as vezes, no balcão ou cadeiras do bar, para indefectíveis gins-tônicas,
com sementes de zimbrio. Sempre voltamos a naufragar nestes e nos mexilhões, de
entrada, até que numa dessas pedi ao garçom que sondasse o chef (e ia eu lá
saber que não tinha) se poderia aproveitar o maravilhoso molho para envolver
espaguetes. Temeridade que só hoje tenho ideia, do tamanho, mas que o consegui,
todas as vezes.
Não frequento restaurantes
assiduamente, muito menos os da moda (salvo se convidado); não leio colunas de
gastronomia e chego aos lugares por alguma iluminação bíblica ou do estômago e,
quando o satisfaço e me sinto com indisfarçável alegria dos almoços de domingo
na memória ou em que hoje estou; volto e volto, enquanto a moeda ajudar, mas, é
verdade, já faz algum tempo que não como mexilhões, ainda que persista na luta
a favor dos gins-tônicas.
Carosella não esconde
nestas páginas seus melhores sentimentos e desejos, tensões e tesões, além, por
óbvio, das paixões e despedidas, até a chegada de Francesca, quando se afirma:
mãe e acena com fechar cortinas para... bem, melhor não fazer prognósticos. Não
consegue esconder que é uma falsa-tímida, aluna disciplinada de academia
militar-gastronômica, e que, desde sua ida a Nova York, arrasta por países e
restaurantes as malas sempre prontas para voltar ou seguir em frente. Fã,
confessa, do aïoli, das altas temperaturas dos fornos, lenhas e fogões de seis
bocas e de seus amores, não esconde aquele profundo de sua mãe e avós, mas, sem
perder a ternura ao narrar a despedida de seu pai.
Carosella escreve as
receitas com o coração entre as mãos e o despeja, gota a gota, em nossa memória
a fazer com que as receitas pareçam – mesmo quando o não são – simples, o que
permite que nos reconheçamos como “cozinheiros” (os mais afoitos: “chefs”) a
sobrenadar ingredientes e receitas entre o cérebro e o paladar.
Os taralli, a straciatella
ou a zuppa inglese de Mimina tem a lembrança aproximada do sabor daqueles de
Lucia, Ida, Chiara ou Nida e com as quais também aprendi a amar a cozinha, seus
objetos, os fornecedores e a usar os sentidos para que a receita tenha os
melhores ingredientes ou o melhor cozimento (como o do polvo). Galinhas ‘de
vida digna’; água e vinho “não para cozinhar”, mas as que utilizamos para cozer
ou para beber.
Teria mais, muito mais,
mas se me permitem os fados, quero destacar duas frases de sua sentida e gentil
apresentação:
“Comer é um ato político.
Somente sabendo de onde vem a nossa comida, como ela é feita e o impacto que
causa na nossa sociedade é que poderemos ser agentes ativos, de algum tipo de
mudança. ” É uma.
“Minha história é cheia de
rachaduras. E foi olhando para elas, mergulhando na profundidade delas, que me
defini como a pessoa que sou hoje, e a que eu gosto de ser.” Duas.
Se me alongasse na
escrita, esta seria um verbete e não uma breve resenha, sem que se olvide a Carosella
dos agradecimentos, em especial ao fotógrafo Jason Lowe.
Caetano Lagrasta
Que linda resenha! É dessas que dão água na boca só de imaginar como deve ser bom degustar as páginas do livro, uma por uma. Parabéns ao autor e a toda a equipe do Boca!
ResponderExcluirlinda resenha! Quero muito ler o livro!
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