Impressões:
Damas de Espadas & Valetes de Ouro - Memórias Embaralhadas
por Adriana Aneli
“Pois é disto que
se trata em Damas de Espadas & Valetes de Ouro: instantâneos do cotidiano,
independentes, mas que parecem encadeados, como capítulos de uma história ainda
mais densa que vai ganhando detalhes e personagens à medida que se desenvolve.
Mas é uma viagem que não acaba.”
Luiz Vita
& Lurdinha Garibaldi
Cinco
dias de férias. Escolhi praia. Porque em férias de azarado sempre chove, pensei
logo em carteado. Não jogo cartas. Coloquei na mala um livro de contos do
baralho.
A
experiência de Leonel Prata (2009) se repete em 2016 no coletivo Damas de Espadas &
Valetes de Ouro – Memórias Embaralhadas (Ed. MGuarnieri). Pelo apurado projeto
gráfico de Marcílio Godoi –
que assina também a carta-capa – escritores e ilustradores desfilam em catorze
pares.
Também o destino atuou na composição das duplas
artísticas: as damas e os valetes se encontraram por sorteio... Alea jacta est!
Um
fio condutor compõe cada página: espectros de memória nada inocentes, lembranças
do corpo e da sexualidade primitiva. Os naipes não são sempre os mesmos. Há
histórias sobre a crueza da vida, outras de sensualidade mortal, o amor, a
alegria desencontrada.
Da
caneta aguda de Adriane Garcia
nascem homens e mulheres disfarçados de esperança e é assim que se escapam
(escapamos) deste sem-saída-país que nos habita. Na sujeira e na beleza que ela
nos conta, a vertigem se completa nos traços generosos e futuristas de Rômulo Garcia.
A
próxima a dar as cartas é Denise Ribeiro
e é aí que o coração dispara entre o nostálgico e a modernidade, entre as
possibilidades de... e o peso imenso do nunca, este agigantado no meio da sala.
É Negreiros quem esfuma os contos de
riso e, no momento seguinte, os preenche de solidão.
A
rodada é de Líria Porto, poemas que
transformam cassino em cabaré; com Jean
Galvão, a dama canta e rodopia seu humor, a saliva quente, o hálito de
uísque – traços tão familiares quanto a lírica da autora.
E
porque o Brasil é uma festa, chega Maria Balé com sua prosa diamantada,
decidida a criar outro jogo dentro do jogo. Ela blefa. Seus personagens nunca
são o que parecem ser (ou vice-versa?). Mas como tem coisa que só se aprende
jogando, Paulo Caruso paga a aposta,
pleno de cumplicidade.
Marilena Montanari e Michele Iacocca escolhem cuidadosamente
as cartas de abertura: a memória aqui muda de velocidade para que os
adversários não prevejam suas jogadas. Com eles, desfrutamos da infância, da
vida adulta, da terceira idade, com a condescendência do olhar bem humorado
sobre a vida. Amém.
O
clima se adensa com Suzana Montoro e
Henrique Montanari. Somos avisados
em abismos de ideias e maquiagem borrada: a vida é um jogo de ganha e perde,
mais desencontros que encontros... Não à toa nos deparamos com o desenho da carpa
da página 77: a longevidade, a coragem,
resistência... a perseverança.
E se
é preciso persistir, a prosa articulada de Vivina
de Assis Viana e as charges singulares de Orlando Pedroso são motivo para continuar por estas páginas. Da
história que Vivina não apagou – para minha sorte – guardo: “Essa noite eu tive um sonho muito bom, tinha
um defeito: era mentira”. Amanhã, como todos os dias vou sonhar mentiras, “acordar às cinco. Acordar não, ser acordada.
Deus ajuda quem cedo madruga”. É. Na verdade, isso dói – por sorte, ainda
sobraram alguns dias de férias.
(Não,
não teve um só dia de chuva nesta semana. Equilibro meu livro enquanto tomo
água de coco. Não se levanta da mesa com cartas boas nas mãos e, por isso,
trago o livro à praia comigo).
A vez
é de Antonio Barreto e Silvana de Menezes... Com eles,
mergulho numa simbiose. É curioso ver como a memória cotidiana de Barreto ganha
intensa afetividade nos traços de Silvana... Isolados funcionam muito bem;
somados, multiplicam-se em significâncias.
Na
memória afetiva permaneço: conflitos de Jacques
Fux e desenhos macios de Luiza Nasser
confessam um passado que tanto amedronta quanto enternece. As descobertas.
Sequência
real: João Anzanello Carrascoza e Cristina Arruda - sutileza, delicadeza,
sensualidade, generosidade, compreensão. Melancólico mar e suas ondas: a
palavra sede, a fome, nossa primeira morte.
É Jorge Nagao quem corta as cartas para Tereza Yamashita distribuir suas
alegrias: o resultado é a adrenalina de poéticos-trocadilhos que é tão Jorge (e
que eu adoro, Salve!) e de frenéticos cupidos, riscos, rabiscos que é a digital
de Tereza no coração da gente.
Hora
de por ordem na mesa! E chega Leonel Prata
- organizador e um dos valetes de ouro - que vai logo puxando cadeira, chamando
pro jogo, sem firulas ou preciosismos literários. É mesmo uma delícia bater
papo com o autor, enquanto o instantâneo da história vai se revelando, camada
após camada, no apurado processo de interpretação da ilustradora Erica Mituzani.
A
dupla Luiz Bras e Natalia Forcat é sensorial: dá gosto de
ler e vontade de tocar os desenhos lambuzados pela memória do autor: “Eu estou apaixonado, cara mas também estou
muita assustado”. Quem disse que ler
não vicia?
Mas
todo o fim tem seu começo e Marcílio Godoi chama sua dama Juliana Cordaro para fechar com chave
de ouro – ou de espada. E a gente mesmo se absolve de todos os pecados que
deixamos de viver e que bem que viveríamos se nos fosse dada a chance de voltar
um pouco no tempo.
É
isto: em memórias embaralhadas não
há truques; as cartas estão todas na mesa. O momento é tenso – aos leitores
cabe a decisão de jogar ou desistir. Eu arrisquei e li até o fim. Ganhei.
Adriana
Aneli
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Damas de Espadas & Valetes de Ouro - Memórias Embaralhadas pode ser adquirido na Livraria Cultura ou direto com seu organizador Leonel Prata.