BAP1: O seu relacionamento com a literatura é
antigo. Quando a poesia bateu à sua porta?
Ana Elisa Ribeiro: Meu relacionamento com a literatura é antigo e
forte. Mesmo quando eu tento me safar dela, ela me chama de volta. Tenho 41 anos
e mais da metade deles foi vivida às voltas com textos literários, publicações,
eventos, etc. Muita persistência, não? E resistência. Comecei cedo, escrevendo
só para mim, na máquina de datilografar emprestada pelo meu pai. Eu devia ter
uns 15 anos. Publiquei pela primeira vez ali pelos 19, em um zine - Vitamina
Rock - produzido por jornalistas de BH que eu não conhecia pessoalmente. Um
deles é o Wagner Merije, escritor e agitador. Então veja que não sei viver de
outro modo. O resto é a trajetória custosa de quem escreve, publica, é
mulher... nesta seara, de quem lida com mudanças sociais e mercadológicas, etc.
Então conto aí mais de vinte anos de atividade, por isso fico tão irritada
quando me tratam como "jovem", "iniciante", "novos".
Mas fazer o quê?
BAP2: A experiência de professora e
pesquisadora exerce algum tipo de influência na sua obra literária?
Como é esta relação?
AE: Não sei se exerce. Minha produção literária é
anterior à minha vida de professora e pesquisadora. Além disso, corri da
literatura como área de estudo. Sou linguista aplicada. Minha praia acadêmica é
completamente outra. Nem dá pra levar livros literários nos congressos de que
participo. É um malabarismo conciliar as duas coisas. Mas dá certo. Um
pouquinho de sensação de vida dupla, mas é disso que eu gosto. Fui fazer Letras
na universidade por motivos diferentes. Não era pra ser escritora. Ser escritor
nunca dependeu disso. Minha vida de professora, se eu pensar bem, sufoca um
pouco minha vida de escritora. No entanto, esta é sustentada por aquela, em
larga medida. Eu morreria de fome como escritora. Mas o preço é alto para
conseguir fazer as duas coisas. Normalmente, a gente trabalha em condições meio
precárias e sem reconhecimento - até na família há quem torça o nariz,
machistas de plantão, especialmente entre as mulheres, etc. Então é tarefa que
não acaba mais, tarefa que come tempo. O tempo de escrever fica parecendo um
luxo ou um favor. Às vezes é até mal visto. Tipo: "essa mulher está meio à
toa. Tá até publicando poesia!" Não foi apenas uma vez que ouvi coisas do
tipo: "Onde você arranja tempo para escrever poesia?" ou "Ah,
você estava descansando então!". Era pra dar raiva, mas me dá só um
cansaço meio preguiçoso. Escritor não é um lance levado a sério por estas
bandas. Imagina escritora?
BAP3: Fale do seu primeiro livro. O que motivou
a escrevê-lo? Como você o vê hoje?
AE: Meu primeiro livro chama-se
"Poesinha". É um volume bege e laranja, pequeno, publicado em 1997,
na coleção Poesia Orbital, na comemoração dos 100 anos de Belo Horizonte,
cidade onde nasci e onde provavelmente morrerei. Eu tinha 21 ou 22 anos. Foi um
convite de uma amiga, na época irmã de um namorado. Ela é jornalista e poeta, a
Luciana Tonelli. Foi uma interlocutora fantástica. Eu quis participar, tive o
apoio financeiro do meu pai (que não curte literatura), pedi ajuda à minha
então professora de literatura Myriam Ávila para a seleção dos poemas. Eu tinha
centenas deles esperando para serem xingados, mexidos, elogiados. Myriam foi
atenciosa, generosa e entregou os poemas para a mãe dela, a Laís Corrêa de
Araújo, uma poeta mineira importantíssima. Eu não tinha a menor noção disso. A
Laís é que selecionou, mandou uma cartinha comentando cada texto. Eu obedeci,
na maioria dos casos. E publiquei. Foi legal estar naquela coleção, ter alguma
visibilidade. Acabei conhecendo muita gente por causa disso. Mas ainda
estávamos longe da existência das redes sociais e da internet rotineira. Depois
fui publicando, encorpando as coisas, participando da vida literária de BH, à
minha maneira.
BAP4: Como surgiu a ideia da coleção Leve um
Livro? Quais serão os próximos passos?
AE: A coleção Leve um Livro é um projeto de dois
curadores: eu e Bruno Brum. Ele é poeta mineiro, mas mora em São Paulo há
alguns anos. Quando sentamos para conversar sobre a L1L, ele ainda morava aqui,
agitava, editava. Bruno ficava incomodado com esse lance de "poesia não
vende" ou "não gosto de poesia". Ele achava - e ainda acha - que
as pessoas não curtem poesia porque têm poucas oportunidades de conhecê-la. Daí
pensamos em livros para distribuir de graça pela cidade. Não é um projeto
escolar, nem com público fechado. É um projeto aberto, poesia na livraria e no
café, mas também na rodoviária, na estação do metrô, no Uai (nosso Poupa
Tempo). Então entramos no edital do fundo de cultura da Prefeitura de BH e
aprovamos o primeiro ano. Executamos com sucesso o Leve um Livro 2014-2015.
Entramos de novo para a segunda temporada. Aprovados. Estamos finalizando a
execução 2016. E entramos de novo, tudo ao mesmo tempo agora, para 2017.
Aprovamos. Já estamos na gráfica com os primeiros meses do ano que vem. É muito
trabalhoso, demora a ser reconhecido, mas o resultado tem sido muito legal. Tem
burocracia pra caramba, muito risco, mas vamos finalizar. Não entramos
novamente em editais. Estou cansada. Mas ainda temos algumas ideias para
pensar. O projeto, contando as três temporadas, terá distribuído, em dezembro
de 2017, 180 mil livros de poesia contemporânea, de 73 autores diferentes (eu e
Bruno fizemos um livro duplo). O próximo passo é recuperar o fôlego.
BAP5: Livros didádicos Versus literários.
Relações e/ou realizações diferentes?
AE: Não cheguei a escrever propriamente livros
didáticos. Até comecei um projeto, em 2000, mas não deu certo porque a Saraiva
comprou a editora Formato, na época, e desistiu dos projetos em andamento.
Dancei nessa. Escrevi livros paradidáticos, já que têm sido usados como apoio
ao ensino. É o caso de "Com H ou sem H", em parceria com a Zoé Rios
(editora RHJ) e de "O e-mail de Caminha" (RHJ, 2014), que as escolas
têm adotado quando tratam da Carta de Caminha. Outros livros que publiquei são
técnico-científicos, isto é, relatam pesquisas e contribuem para a formação de
professores. É isso. Faz parte da minha carreira acadêmica. Realizações
diferentes, certamente, mas eu quis e quero muito as duas. Meu tesão é
escrever.
BAP6: Qual dos seus poemas é o mais
autobiográfico?
AE: Difícil dizer... a maioria deles pode ser
autobiográfico e não ser. Há sempre muita performance no que está ali. Não foi
exatamente daquele jeito, mas é preciso parecer que sim. E começo a me
preocupar mais com as palavras para que o poema exista, e menos com o que está
dito. Poemas de traição geralmente são verdade. Quem nunca? Bom, talvez este, à
página 46 do meu livro de 2015, o "Xadrez", pela editora mineira
Scriptum, seja o mais profundamente biográfico:
Meu pai
Eu já quis ser como você
quando eu crescesse.
Eu não fui. Eu fui outra.
Eu fui, ainda assim,
muito de você:
o que eu escolhi
e o que eu não pude controlar.
O resto é puro amor.
BAP7: Concursos de Poesia, Contos e Crônicas.
Você, que venceu concursos literários, o que aconselharia a quem tem esta aspiração?
AE: Não venci tantos concursos e nem participei deles
em profusão. Deixo editais passarem, tenho preguiça da burocracia, fico sem
tempo para preparar o material, fico sem material inédito suficiente, etc. Depois do zine Vitamina Rock, venci um
concurso de uma rádio e do jornal Estado de Minas, quando tinha 19 anos. É
claro que isso dá um gás na gente. Depois não participei de muita coisa. Nunca
acho que minha poesia, minha voz, minha dicção são de ganhar prêmios. Tem um
lance incômodo ou pouco alinhado à poesia que ganha prêmios. Acho um
investimento meio ingrato ficar com expectativas em premiações, embora elas
devam existir e sejam importantes. Há muitas pessoas que ganharam visibilidade
- além da grana - depois de prêmios. Prefiro correr atrás de publicar, como
sempre fiz. Devo ter concorrido no prêmio do governo do estado de Minas Gerais
uma vez e talvez outra no Cidade de Belo Horizonte. O "Xadrez", ainda
sem esse nome, estava em algum deles, não ganhou, então publiquei. Teve várias
resenhas, foi bacana. Fui júri de prêmios várias vezes, isso me deixa ainda
mais consciente do que precisa rolar para alguém ganhar. É um mecanismo
complexo e sério, na maioria das vezes. E tem esse lance dos tipos de concurso:
alguns são para obras inéditas e outros são para livros publicados. No Brasil,
temos de tudo. Meus livros "Anzol de pescar infernos" (poesia, Patuá,
2013) e o "Meus segredos com Capitu" (crônica, Jovens Escribas, 2013)
ficaram como semifinalistas do prêmio Portugal Telecom (hoje, Oceanos) ao mesmo
tempo. Foi ótimo. Mas é diferente. A editora faz a inscrição, a gente fica à
espera de algum reconhecimento, seja isso o que for. Depois "O e-mail de
Caminha" ganhou um selo do acervo básico da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil - a FNLIJ -, que é bem importante. Agora um inédito meu ganhou
o prêmio Cidade de Manaus, na categoria poesia. Chama-se "Álbum" e
vou ver ainda o que fazer com ele. É um livro em que mudei de dicção para
atender ao projeto delicado de falar de fotografia. Adorei fazer. Estava
pronto, quando pintou o edital do concurso. Mandei brasa. E deu certo. É claro
que isso me deixa feliz, mas ainda há um longo trajeto para a publicação e o
ciclo desse livro, que pode dar com os burros n'água, sempre. Há concursos
respeitados, como o Jabuti, no qual nunca entrei. A taxa de inscrição é meio
cara e acho um absurdo o autor ter de arcar, mesmo quando tem editora. Tudo bem
que as editoras costumam ser pequenas e não têm muitos recursos, mas é chato,
especialmente se a edição for bancada pelo autor também. E depois, quando vejo
os resultados, sempre penso que fiz bem em ficar quieta. Dar conselhos é
inútil. O que posso dizer pra quem está realmente começando... é que trabalhe
muito. Trabalhe, faça, publique (hoje tá fácil). Conheça gente, mas não seja
oportunista. Leia muito. Informe-se sobre o que está rolando hoje, mas tenha o
bom senso de conhecer o passado, no cenário. Não entre em modinhas, se quiser
ter vida longa na literatura. Mas trabalhe. Se for menina, trabalhe em dobro e
resista.
BAP8: Caminhos da Educação no Brasil. Além da
ordem política, o que deveria mudar, na sua opinião?
AE: Educação é um negócio muito amplo. Se estamos
falando de escola, há muito o que melhorar mesmo, a começar por entendermos que
esse espaço deveria ser público, gratuito e bom para todos, ricos e pobres.
Nosso problema não é só o pobre ter uma escola ruim. É o rico não entender que
a escola pública também deve ser dele. Cheguei a viver a época das boas escolas
públicas municipais e estaduais. Era um orgulho estudar em uma delas. Mas não
eram tão acessíveis quanto são hoje. Infelizmente, as coisas se resolvem de um
lado, e se ferram de outro. Meu filho precisa estudar na mesma escola que o
filho da faxineira e do grande empresário. Mas ainda não sacamos como isso pode
funcionar. Somos um país preconceituoso, excludente, segregador, onde
distinguir-se é bonito. Quanto à forma como a escola funciona, temos outro
problema. Tempos fragmentados, conhecimento fragmentado, incomunicação,
pais/mães que acham que escola é um lugar neutro, divino, mitológico. Enfim...
escola é lugar de discussão, de debate, de ideias, de diversidade. Mas não
dá... já fui demitida por adotar Paulo Leminski na sétima série, em escola
privada. A gente vai desistindo... A formação de professores precisa ser
melhor, mas também as condições de trabalho, o salário, os tempos de
capacitação. Um mestrado muda MUITO a cabeça de um profissional do ensino. Há
dezenas de prefeituras e estados que proíbem professor de estudar.
Capacitação... só se for na marra e na pobreza. E não é falta de projeto do
governo federal (pelo menos do anterior...). As pessoas precisam pagar contas,
e muito mais do que isso. Enquanto acharem que escola tem de funcionar só na
missão e no amor, me desculpe, mas não tenho paciência. Você precisa de uma
sala equipada, de computadores, de uma banda larga decente, de um gabinete onde
atuar nas suas orientações, com seus alunos, de uma sala de aula arrumada, de
um auditório legal onde levar convidados e conhecimento para dentro dos muros
da escola. Não tenho nada disso, por exemplo, e trabalho em uma escola pública
de destaque. Meu ódio diário precisa ser controlado. Há um discurso sobre
cultura que é pura maquiagem. Nem vou comentar... Difícil, não? É nadar contra
a maré o tempo todo. E depois ainda me perguntam pra que serve a poesia... pra
sobreviver, ora! Enfim, só escolhi coisas difíceis, não? Rá! Haja bom humor.
__ entrevista realizada por
Chris Herrmann e Adriana Aneli