A EQUAÇÃO DE IONIZAÇÃO DOS
ÁCIDOS
De todos os gêneros, a
resenha mas difícil é dos contos. Trilogia de Krzysztof Kieślowski, livros trazem em si
desafio extra: para além de ler e apreciar cada uma das histórias isoladamente,
é preciso descobrir qual o risco que as une, no bordado. Para mim, leiga em assuntos
catedráticos, aceito o desafio sensorial e deixo a literatura tecer-se em mim, de
forma apaixonada.
Assim li A B Ácido -
estórias e sobre ele retorno repetidas vezes, enquanto esboço este texto.
Rauer, conheci da deliciosa
novela Cenas de Amor e Paixão, um reencontro com a linguagem de Nelson
Rodrigues, em pitadas envolventes do pseudônimo Suzana Flag. Ainda, do precioso
e preciso mininus & brevíssimos (Ed. Pangeia). Neste livro,
entretanto, encontro voz diferente; aqui o autor me confidencia segredos e anedotas;
narrador sutil e irônico, diverte-se com as próprias travessuras da linguagem que
cria, líquido em que dissolve personagens para a ionização dos opostos.
Logo de primeira, o espanto:
“Um cálice” – diálogo de amor diminutivo, cotidianim, escancarado às portas da completa
exasperação:
- O que mesmo minha paixãozinha quer?
- Que me dê um cálice de cicuta.
Segue-se passeio sem pressa
pela memória das descobertas: “AISA”, o passado em foto antiga e a transformação
da relação de madrinha/ afilhado. Com domínio absoluto da técnica do diálogo,
forma-se novamente o caldo em que os amantes se ionizam. Assim é a paixão – ou
as flores: “Belas, mas morrem logo; com esterco, água e sombra, algumas
renascem”.
Atenta à saga de “Tortolindo”,
personagem familiar ao tempo de mitos malditos, eu não tropeço no fio; o meio é
ácido e ocorre a perfeita dissociação entre as propriedades da sua não-existência
crítica (e em escrita diáfana) e a memória dos outros, minuciosamente tolerada-acumulada-
documentada em anotações, objetos e prole.
Saímos então do credo para adentrar
veredas: a miséria humana (aquela mesma
por que antes Tortolindo desapareceu?)... Contos de violência apócrifa,
boca da noite, acordes de opereta vexatória; a morte anunciada com afago e
carinho a todos (ou um escarro).
Ouve o som? Vê a fúria? Percebe
como a condição humana se agiganta a propósito de nada? “Kratos” é o convite que Rauer nos faz para a mais
saborosa de suas estórias (dou graças por não ser a única que discorda do AO90,
amém!).
É então que a epígrafe “JÁ É TEMPO: ABANDONEMOS ESTES LUGARES
INTOLERÁVEIS” explode como átomo enriquecido (veja que Ariadne não abandona o campo da química).
As histórias de som e de
fúria me arrastam em sua perturbadora melancolia. Macbeth, você estava certo! A
vida não tem mesmo significado algum. Nossa alma é inorgânica e está morta.
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Cai o pano -
Professor de literatura brasileira na UFMS, atua na graduação e na pós-graduação; fez doutorado em Estudos Literários na UNESP de Araraquara e pós-doutorado em Literatura Comparada na UERJ. Ficcionista, tem nove livros individuais publicados, e mais de uma dezena de obras em que foi organizador ou co-organizador. Participa do Conselho Editorial de diversos periódicos e coordena o Conselho Editorial da Editora Pangeia. Escritor; professor; em travessia.